terça-feira, 6 de março de 2012

Dvorak - A Nona Sinfonia "do novo mundo"

Dvorak de quem falamos embora brevemente nesta curta biografia escreveu esta sinfonia na sua residência em Nova Iorque para onde tinha sido convidado diz-se na esperança que pudesse trazer o novo país (os Estados Unidos) para a cena artística mundial quer  das suas orquestras quer da sua musica "nativa".

A verdade é que a nona Sinfonia foi desde a sua estreia um sucesso sendo uma das obras mais interpretadas do reportório clássico. Na estreia a 16 de Dezembro de 1893 diz-se que no fim de cada andamento a Orquestra foi interrompida pelos aplausos do público e que Dvorak foi forçado em cada um deles a aparecer e a agradecer os aplausos. No que nos diz respeito só é pena não existir na altura a memória visual e fonográfica porque gostaríamos sem duvida de a partilhar.

O que é fantástico é se o Conservatório que foi convidado a dirigir e que justificou a sua deslocação para os Estados Unidos não teve sequência é que esta obra é fundamental na criação de uma identidade americana no que diz respeito à música clássica mesmo que seja discutível se a fonte de inspiração da mesma seja genuinamente americana (ou afro-americana) como Dvorak explicava em 1893 na véspera da estreia ou antes da Boémia como pretendem alguns musicólogos. Podemos sempre alinhar com Bernstein e preferir considerar que é uma obra verdadeiramente multicultural. O que não é discutível é que tanto esta obra como a permanência de Dvorak na América efectivamente criou a escola americana. Igualmente indiscutível, celá vá de soi, é a relevância da obra na história da música.

A obra encomendada pela Orquestra Filarmónica de Nova Iorque foi estreada como referido no dia 16 de Dezembro de 1893 no Carnegie Hall sendo a Orquestra dirigida por Anton Seidl. Não existindo registos dessa época escolhi para vos ilustrar esta sinfonia a interpretação de Karel Ancerl dirigindo a Orquestra Filarmónica Checoslovaca numa gravação de 1958.

Para quem não tem problemas com inglês obviamente não posso deixar de recomendar uma apresentação de Bernstein de 1958. Esta apresentação da obra é interessante dado que aponta as verdadeiras fontes de inspiração de Dvorak como sendo essencialmente europeias embora de fontes tão diversas que pelo seu carácter multicultural a obra se torne na opinião de Bernstein verdadeiramente americana. Não tendo  conhecimentos musicais para discutir a opinião deste maestro que ainda por cima admiro profundamente acrescentaria que pouco importa a fonte de inspiração se ela nos soa hoje como "americana" e se na época teve como efeito (e isso é indiscutível) a criação de uma escola ou pelo menos alguns arquétipos, alguns fundamentos dessa escola. Notável para alguém que passou poucos anos nos Estados Unidos.

Primeiro Andamento (Adagio-Allegro Molto) : Escrito na forma de sonata (embora tenha alguns pontos que não são propriamente típicos desta forma) este andamento começa de uma forma lenta introspectiva diz-se por vezes inspirado da melancolia dos espirituais negros numa introdução que nos leva à apresentação dos dois temas (ou três dependendo das análises) sendo que esse terceiro tema é precisamente aquele que mais é identificado com essa forma musical. Mas  mais importante do que apreciar a maestria formal é conseguirmos perceber a intensidade dramática que Dvorak pretende transmitir. Esta intensidade é conseguida obviamente á custa dos instrumentos de que um compositor dispõe, dos momentos de calma, das mudanças de intensidade e de tipo de som, dos diálogos entre vários instrumentos. Começa calmo este andamento como que nos preparando e dizendo algo tem de acontecer, algo vai acontecer e será dramático dizem-nos os quatro acordes que rompem essa calma. Quando o primeiro tema é mostrado tem primeiro de "lutar" fazendo algumas aparições ténues e incompletas antes de ser totalmente revelado. É com estes conflitos que Dvorak nos transmite uma primeira ideia de intensidade dramática que logo é contrastada pelo seu exacto oposto, uma melodia de grande beleza e calma. Depois há ainda o terceiro tema (ou a segunda parte do segundo dependendo como dizia das interpretações) claramente inspirado dos espirituais negros. Se toda a parte da exposição dos temas é dramática e cheia de surpresas o desenvolvimento, a re-exposição e a coda não lhes ficam a dever nada num final de andamento que nos deixa verdadeiramente emocionalmente exaustos. Oiçam aqui a interpretação de Karel Ancerl e da Filarmónica da Checoslováquia numa interpretação gravada ao vivo em Ancona em 1958.

Segundo Andamento (Largo) : Precisávamos como numa boa peça de teatro ou num bom filme de um contraponto a essa montanha russa (deveria dizer eslava) de emoções e é isso que o segundo andamento nos dá. Um momento de serenidade, de grandes espaços de nostalgia também parece-me claro, mas sobretudo de calma. Este andamento é sobretudo conhecido pelo tema introduzido pelo Corne-Inglês tema que aliás foi retomado pela música popular americana na conhecida canção "Going Home". Na verdade a nostalgia, tranquilidade e diriam os portugueses a saudade parece estar presente. Se quiserem podem ouvir aqui uma interpretação histórica e fabulosa desta canção na voz de Jane Froman. Embora não seja claro se existia um espiritual negro no qual Dvorak se teria baseado o que é certo é que este tema se tornou popular depois da estreia da sinfonia. Aliás a interacção entre Dvorak e Harry Burleigh e a criação de uma identidade musical americana daria só por si tema suficiente para um post. Curioso será que esta tenha sido a obra de um boémio (no sentido de habitante da Boémia, não sejam maldosos) ainda por cima cheio de saudades do país natal. Curioso ou talvez não. talvez não pudesse ter sido mais certo nesse verdadeiro melting-pot de culturas, melhor talvez só um português mas não calhou ... Podem continuar se desejarem com a interpretação de Karel Ancerl mas para que tenham outras alternativas antes das sugestões finais aqui fica a interpretação de Karajan dirigindo a Filarmónica de Viena.

Terceiro Andamento (Sherzo-Molto Vivace) : No terceiro andamento espera-nos mais um contraste. Da paz do segundo passamos a um andamento frenético e cheio de contrastes tal como o primeiro. Se o inicio do andamento vos parecer semelhante a qualquer coisa que já ouviram, bem, é porque na realidade  Dvorak cita Beethoven e a sua Nona Sinfonia num sinal de respeito e de admiração. Numa sinfonia do novo mundo Beethoven obviamente só poderia ficar bem, um dos primeiros paladinos dos músicos e da sua liberdade criativa, merece ser citado na primeira obra que estabelece a maturidade artística de um novo país mesmo que esta seja obtida através de colaborações externas. Mas afinal esse não é exactamente a forma fundadora dos Estados Unidos? Neste andamento contrastam passagens rápidas com passagens lentas e belas melodias, ritmos em que quase podemos ouvir os cowboys nas pradarias mas também elegantes valsas directamente da Boémia de Dvorak. É uma terra de contrastes, de fusão aquela que nos é descrita neste andamento. Podem como sempre continuar com Karel Ancerl (Terceiro Andamento) não vos levo a mal se o fizerem mas como gosto de dar alternativas oiçam agora um outro checo Rafael Kubelik com a Orquestra Sinfónica de Chicago numa gravação de 1951.

Quarto Andamento (Allegro com fuoco) : E agora podemos perguntar:  Haverá ainda alguma coisa para dizer? Para qualquer outro compositor talvez não houvesse (a quantidade de material, de ideias, de melodias expostas nesta sinfonia é avassaladora) mas para Dvorak não. Este quarto andamento ainda nos reserva uma boa dose de surpresas: Na sua tradicional (bom apenas aparentemente já que esta é altamente modificada) forma de Sonata, na inspiração do seu mentor e amigo Brahms, na utilização de formas melódicas irlandesas e escocesas, na forma inovadora como a recapitulação dos temas é feita nomeadamente na alteração dos temas na sua recapitulação. Este andamento é aliás melhor descrito como uma verdadeira metáfora  dos Estados Unidos: Uma "sopa" de temas que se vão misturando, alterando, lutando, chegando a consenso, unidos num bem comum, numa obra verdadeiramente grandiosa que termina numa das formas mais calmas que conheço. Oxalá tal como na metáfora os Estados Unidos cheguem a esse fim. Podem como sempre ouvir este andamento por Karel Ancerl (Quarto Andamento) - Primeira Parte , Karel Ancerl (Quarto Andamento) - Segunda Parte mas se prefirirem algo completamente diferente proponho-vos desta vez Gustavo Dudamel

Já referimos sobejamente o enorme sucesso e influência que esta obra teve desde a sua estreia e também já recomendamos ao longo deste post algumas interpretações. Geralmente poderia dizer-vos que para além de Karel Ancerl e de Kubelik poderia recomendar-vos quase sem conhecer muitos outros maestros checos do século XX, parece que eles entendem esta música de forma quase mágica (o que não é surpreendente, provavelmente nasceram com muitas destas melodias na alma) assim como a interpretação de Szell mas nitidamente a que vos aconselho antes de outra é curiosamente a de um americano: Leonard Bernstein. Além de Mahler este (Dvorak) é um compositor que Bernstein entende completamente talvez porque neste caso é a sua América que é retratada.

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